Espaço cultural e escritório compartilhado fomenta conexões e oportunidades de trabalho com foco em gênero, raça e classe
Sabe aquela sensação de ser sempre a única mulher em uma reunião? Ou de ter que ficar se impondo, incessantemente, para que os homens escutem a sua palavra? Essas situações são comuns em muitos encontros corporativos, mas não quando acontecem na Brava, coworking e espaço cultural voltado a gerar conexões entre mulheres no mercado de trabalho e fomentar a discussão sobre desigualdade de gênero, interseccionando com raça e classe.
O manifesto da Brava contra o patriarcado começa já no nome. Hoje, significa uma ressignificação positiva do adjetivo para romper com o estigma da “mulher maluca”. Fabiana Kassabian, uma das fundadoras do coworking, explica:
“Nós, mulheres, estamos inconformadas e não vamos aceitar o que estamos vivendo por não ser o certo e nem o coerente – nós vamos realizar mudanças reais”
E as mudanças já estão postas na mesa. Uma das missões da Brava é reunir profissionais mulheres, física ou virtualmente, para que elas trabalhem lado a lado e consumam conteúdo, façam negócios e gerem renda entre si. A ideia é que uma fortaleça o trabalho da outra para o crescimento profissional e pessoal de todes. O público da Brava é vasto, vai de youtubers a advogadas, com destaque para profissionais autônomas das áreas de comunicação, artes visuais, fotografia e engenharia.
Além do serviço de locação de escritórios compartilhados, a Brava possui uma série de projetos. O Brava Sintoniza são cursos online onde convidadas ministram oficinas de vários temas, como criação e desenvolvimento de produtos criativos, produção de conteúdo para múltiplas plataformas, decolonialidade e discussões étnicos-raciais e, inclusive tarô e astrologia. A Curadoria de Corres consiste em uma seleção de perfis de mulheres, feitos semanalmente por uma convidada, que são divulgados no Instagram da Brava. Por sua vez, o Fala Brava é uma série de trocas e discussões transdisciplinar sobre a desigualdade de gênero.
Em todos os projetos, há a premissa de trazer mulheres para contar suas próprias histórias. Cabe destacar que a ideia é fugir do modelo engessado de talks, que costumam abordar questões identitárias, como “o ser mulher no mercado de trabalho”. Nas rodas de conversas da Brava, elas focam em habilidades que a mulher possui, que vai além de quem ela é – isso é importante para não hierarquizar as profissionais por formação acadêmica ou nível de experiência profissional, por exemplo. Fabi comenta:
“Na Brava, entendemos nossos privilégios e, assim, todas as ações precisam alcançar mulheres plurais, nos diversos recortes da sociedade de diferenças de raça, gênero e classe, para que mais mulheres consideradas à margem da sociedade tenham acesso e visibilidade no conteúdo produzido”
AVESSA GARCIA FABIANA KASSABIAN LAÍS DE ABREU
MULHERES SÃO MÚLTIPLAS
Fundada em junho de 2019 e localizada no bairro Campos Elíseos, na zona central de São Paulo, a Brava é gerenciada por Fabi, que hoje trabalha junto com Avessa Garcia, responsável pela gestão e conteúdo das redes sociais, e Laís de Abreu, diretora de projetos especiais e eventos. Apesar das três colaborarem diariamente na Brava, elas pontuam que nada é construído de forma individual e o negócio vai além do trio. Elas afirmam que a Brava só é possível por meio de ações coletivas e que as vivências e experiências delas se somam com o conhecimento de outras mulheres. A cocriação é uma tática para dialogar com mulheres de todo o Brasil, através de discursos e ações que contemplem recortes de raça e classe.
A Brava se posiciona como interseccional e decolonial – assim como a Emerge. Afinal, a homogeneização do gênero feminino também é uma forma de desumanização das mulheres e tende a invisibilizar aquelas que estão na base social. De acordo com a pesquisa Desigualdades Sociais por Cor ou Raça, feita pelo IBGE em 2019, mulheres brancas ganham 70% a mais do que mulheres pretas. Por sua vez, a PNAD Contínua Trimestral, divulgada em agosto deste ano também pelo IBGE, apontou que as mulheres são as mais impactadas pelo desemprego na pandemia, com taxa média de 14,9%, mas ao analisarmos isoladamente as mulheres negras, a taxa salta para 33,2%. Outro estudo, realizado pela Gênero e Número, indicou que 40% das mulheres afirmaram que a pandemia e a situação de isolamento social colocaram a sustentação da casa em risco – e, mais uma vez, a vulnerabilidade é maior entre as mulheres negras.
Diante dos fatos, a Brava discute problemáticas estruturais e estruturantes. Laís conta que as ações específicas não seguem as datas oficiais do calendário, como acontece na maioria dos lugares (sabe aquele lance comum em empresas de bem de consumo e veículos de mídia de fazer conteúdo sobre mulheres no mês de março e sobre negritude em novembro, mas no dia a dia da organização quem manda é o homem cis branco hétero? Então, isso é oportunismo e nada mais #ficaadica).
“Não queremos biscoito por nos posicionarmos da forma que nos posicionamos”, diz Laís. “É uma obrigação nossa ter essa responsabilidade.”
E mais do que abrir as portas da Brava para as mulheres múltiplas, é sobre entender e colocar em prática que há pessoas com mais conhecimento e propriedade para falar sobre determinadas situações e vivências. “Ao construir uma organização com propósito, não trabalhamos para deixar um homem branco mais rico”, complementa Fabi. “Cada pessoa que chega coloca o que acredita dentro da Brava”. Uma das mudanças pensadas de forma conjunta foi implementar a linguagem neutra de gêneros gramaticais no conteúdo desenvolvido pela Brava para abarcar todas as existências, e textos alternativos nas postagens em redes sociais para que pessoas com deficiência visual também consigam acessá-los.
Para Avessa, a Brava fomenta redes de apoio no mundo real e faz um networking que escapa da lógica predatória ao enxergar afeto, acolhimento e luta como recursos para fortalecer a comunidade feminina dentro do mercado de trabalho. “Repensamos o que é esse mundo para que a Brava não seja um lugar de abusos e assédios, comuns no mercado corporativo”, diz Avessa.
SEM PREVISÃO PARA REABERTURA
É difícil imaginar como um coworking, que é basicamente um espaço fechado onde várias pessoas trabalham lado a lado ao longo dia, pode funcionar durante a pandemia da Covid-19, em que aglomerações não são recomendadas. E, realmente, não tem sido fácil para a Brava. De acordo com o trio fundador, a pandemia é o maior desafio enfrentado até hoje. Elas contam que tiveram que repensar as ações de um dia para o outro e criar formas de atuação digital para um negócio que tinha como base o encontro presencial.
Antes da Covid-19, o maior desafio da Brava era a sustentabilidade financeira, devido a organização oferecer valores acessíveis pelos seus serviços. Graças ao trabalho bem feito, o obstáculo foi superado e menos de um ano após a inauguração a casa se pagava com o faturamento do coworking e proveniente da locação do espaço para realização de cursos, workshops, palestras e até festinhas. Com a pandemia e o fechamento provisório da Brava, que não tem previsão para reabrir, elas precisaram dar um passo para trás. Fabi explica que ainda não é possível reproduzir o olho no olho e a interação que funciona em encontros presenciais no mundo digital, mas que elas estão encontrando meios de continuar com as trocas. Foi dessa necessidade, por exemplo, que surgiram iniciativas como a Curadoria de Corres e o Brava Sintoniza.
Mas a situação também trouxe oportunidades positivas, como a expansão da Brava para além do eixo Rio-São Paulo. Com foco no virtual, mulheres de outros estados estão participando das atividades – muitas delas do Norte e Nordeste. E, assim, que “bravas” seja também sinônimo de “bárbaras”, aquelas que fazem feitos extraordinários merecedoras de aplausos.
FOTOGRAFIAS: Kalinca Maki
Esta reportagem integra o projeto Mapeamento de Coletivos e Produtores Culturais da Região Metropolitana de São Paulo e conta com apoio do Edital ProAC nº 14/2019, de incentivo ao desenvolvimento da cultura popular, tradicional, urbana, negra, indígena e plural no Estado de São Paulo. Veja outras reportagens da série:
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