Marca e loja de moda paulistana desenvolve roupas para reverberar momentos emblemáticos da história política do Brasil
Além de expressão cultural, a moda é um instrumento político. Um dos nomes que mais reverberou o conceito no Brasil foi Zuzu Angel, estilista carioca que atuou na resistência à Ditatura Militar (1964-1985) após a morte do seu filho, Stuart Angel, militante do Movimento Revolucionário 8 de Outubro (MR-8). Em 1976, Zuzu foi morta num acidente de carro, que foi sabotado por agentes do governo. É de autoria da estilista a emblemática frase: “roupa não tem importância, moda tem; é um documento histórico, é criação e liberdade”.
Inspirado no legado de Zuzu, foi criado em São Paulo a marca Ateliê Fomenta, que usa a memória brasileira para desenvolver moda. A missão da marca está presente desde seu lançamento oficial, que aconteceu no 1º Desafio Sou de Algodão + Casa de Criadores em 2019. A coleção intitulada O Passado Nunca Mais trouxe peças baseadas nos shapes da década de 1970, com cartela de cores em tons de cinza e verde-musgo e contrastes de preto e branco, como resgate dos jornais e documentos do período conhecido como Anos de Chumbo, quando a ditadura escancarou a repressão com o Ato Institucional Nº 5.
O Ateliê Fomenta é uma criação conjunta de Fellipe Campos, responsável pelas modelagens e desenvolvimento de superfícies, e Fernando Carvalho, que cuida de estamparia e desenvolvimento de produto. A dupla produz e comercializa roupas dentro de critérios de ética socioambiental e de responsabilidade criativa para fortalecer a indústria da moda como agente de mudança dos trabalhadores da cadeia produtiva. Dessa forma, o lucro é importante para a sustentabilidade do negócio, mas o impacto social positivo está em primeiro plano. Os estilistas comentam:
“As etapas de costura, modelagem e outras técnicas precisam ser valorizadas na cadeia de produção de moda, pois são fundamentais para materializar uma ideia e contar uma história por meio das vestimentas”
Recentemente, em meio a pandemia, o Ateliê Fomenta lançou uma coleção com blusas, camisetas, vestidos e calças – e, claro, máscaras –, com malha de algodão antiviral, que possui uma tecnologia que mata coronavírus.
DA ACADEMIA PARA AS RUAS
Fellipe e Fernando se uniram em meados de 2018, quando eram estudantes de moda na Faculdade Santa Marcelina, em São Paulo. O objetivo em comum foi o desejo de falar criativamente sobre a memória histórica brasileira e utilizá-la para abordar problemas estruturais da nação. Com referências decoloniais e vivências fora do binarismo de gênero (queer), os criadores também usam a moda para romper com os moldes eurocêntricos de padronização corporal.
Nos primeiros meses da marca, eles utilizaram a estrutura da faculdade para desenvolver o negócio e primeira coleção. Com as dinheiro das vendas iniciais e outros recursos, logo conseguiram verba para comprar equipamentos, insumos e montar o ateliê próprio, localizado na Rua Monte Alegre, 1774, no bairro Perdizes, na capital. Um desafio inicial foi a criação de uma estrutura de confecção interna, uma vez que a marca não terceiriza as atividades principais e prefere ter o controle de que as etapas e as pessoas envolvidas estejam alinhadas aos valores da marca.
A segunda coleção da marca, batizada de Memórias Caladas, foi baseada em seis fatos que foram suprimidos das páginas oficiais da história do Brasil.
Entre as referências da coleção, está o genocídio de 60 mil pessoas cometido no Centro Hospitalar Psiquiátrico de Barbacena, em Minas Gerais, entre 1920 e 1980. No período, o hospital recebia pacientes com diagnóstico de doença mental, LGBTQ+, prostitutas, mães solos, pessoas em situação de rua, alcoólatras, entre todo tipo de gente considerada fora dos padrões sociais, para serem maltratadas e mortas com o consentimento do Estado, médicos, funcionários e sociedade. O caso é tema central do livro Holocausto Brasileiro, da jornalista Daniela Arbex (Emerge recomenda). A coleção Memórias Caladas foi apresentada no projeto experimental Moda-SP, realizado em dezembro de 2019 na seda da Mídia Ninja em São Paulo.
Entre outros trabalhos da dupla de estilistas, se destacam a criação de peças sob medida para artistas como Linn da Quebrada, Jup do Bairro e Iza, e a produção do filme Curta-Conferência, vencedor na categoria de Inovação em Linguagem no Prêmio Move Moda, realizado pela Dragão Fashion, a semana de moda do Ceará.
Após um 2019 de muito crescimento, o ano de 2020 foi um desafio para o Ateliê Fomenta devido a pandemia de Covid-19. As finanças da marca foram atingidas em cheio devido a impossibilidade de atender clientes na loja física. A situação fez com que a marca focasse na estruturação da loja física. Num movimento de solidariedade e responsabilidade social, a marca produziu mais de mil máscaras, que foram doadas para a comunidade Bica de Pedra, na zona oeste de São Paulo.
De casa, a dupla de estilistas também participou do projeto audiovisual O Espirro A Epifania, que apresenta uma dança-manifesto criada por Luaa Gabanini, com texto de Fellipe e ilustração e edição de Fernando (veja o vídeo abaixo).
Num ano em que turbulências políticas estão em alta em todo mundo, onde governos se omitem frente a tragédias evitáveis, como recordes de mortes por Covid-19 e queimadas que fustigam o solo e o céu do pantanal a floresta amazônica, se faz necessário refletir sobre o passado e as suas consequências para o presente, afim de reparar danos e construir um futuro mais justo e com equidade social. E a pergunta que fica: qual posicionamento político a sua roupa carrega?
FOTOGRAFIA DE ABERTURA: Fernando Carvalho com edição de Nu Abe.
Esta reportagem integra o projeto Mapeamento de Coletivos e Produtores Culturais da Região Metropolitana de São Paulo e conta com apoio do Edital ProAC nº 14/2019, de incentivo ao desenvolvimento da cultura popular, tradicional, urbana, negra, indígena e plural no Estado de São Paulo. Veja outras reportagens da série:
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