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Ritmo e provocação: jovens contam suas vivências em batalhas de poesia

06/06/2018

Inspirado num movimento criado na década de 1980, em Chicago, o Slam da Guilhermina potencializa a produção literária periférica e organiza oficinas de leitura em escolas públicas

(…) Eu queria escrever a palavra brasil

Aquela em nome da qual

Tanto homem se faz bicho

Tanto bandido general

Aquele em nome de quem

A borracha vira bala

A perversidade qualidade de bem

 

(…) Olho pra caneta e tenho certeza

Não escreverei mais o nome desse país

Enquanto estupro for prática cotidiana

E o modelo de mulher, a mãe gentil

 

As estrofes acima fazem parte do livro Sangria e são de autoria da poeta Luiza Romão, que versifica a história brasileira sob a ótica feminina. A obra foi lançada na noite de 25 de maio, a céu aberto, numa pequena praça bem ao lado da rampa de acesso à estação de metrô Guilhermina-Esperança (Linha 3 – Vermelha), na zona leste da capital.

É ali, toda última sexta-feira do mês, que acontece o Slam da Guilhermina, competição de poesia falada que reúne mais de uma centena de jovens ao redor de um lampião a gás.

COMPETIÇÃO DE POESIA É REALIZADA AO LADO DA ESTAÇÃO DE METRÔ GUILHERMINA-ESPERANÇA, NA ZONA LESTE (Foto: Rodrigo Mota)

“1,2,3, SLAM DA GUILHERMINA”

Um slam (ou batalha de poesias) é regido pelas seguintes regras: os poemas devem ser de autoria de quem vai apresentá-lo (o slammer); o texto deve ser declamado em até três minutos; o slammer não pode utilizar figurinos, adereços e nem acompanhamento musical.

A batalha acontece em três rodadas. O Slam da Guilhermina possui, em média, 15 competidores. Desses, cinco vão para a segunda rodada e apenas três chegam à final. As notas de 0 a 10, que determinam se um poeta avança ou não na competição, são aplicadas por cinco jurados voluntários. O público, ativamente envolvido, sempre se manifesta quando há uma nota abaixo de dez. Ouve-se o coro: “Credo”.

Na hora da avaliação, são valorizadas as palavras, os sentidos, as onomatopeias e o ritmo, lembra Emerson Alcalde, ator, arte educador, gestor cultural e poeta criador do Slam da Guilhermina.

“A comunicação precisa ser eficaz, direta e objetiva para ser rapidamente assimilada pelo público. Diferentemente da escrita, onde o leitor pode ler a mesma linha diversas vezes, se o ouvinte não entender a poesia, o slammer perde o que é mais legal na competição, que é a reação instantânea do público”

Os campeonatos de poesia acontecem, mensalmente, de fevereiro a novembro. Em dezembro, há a final com todos os campeões mensais, quando é escolhido o vencedor do ano. Além dos aplausos, o ganhador recebe R$ 1.000. Depois, é a vez da última disputa, com os campeões de outros slams do país. O grande vitorioso da etapa nacional, o Slam BR, representa o Brasil na Copa do Mundo de Poesia Falada, em Paris, na França.

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Além dos pontos, o slam é um ritual de trocas. Os versos rimados expõem não apenas a situação da periferia paulistana, mas também as mazelas históricas que assolam o Brasil desde o seu descobrimento, como as desigualdades sociais, o preconceito racial, a violência contra a mulher, a homofobia e a transfobia. Há textos que relembram a ditadura militar iniciada em 1964, a Lava Jato e o impeachment de Dilma Rousseff. Entre os alvos do cenário político, estão Temer e seus aliados golpistas, Aécio Neves e, também, Jair Bolsonaro, criticado ferrenhamente devido ao seu estímulo à violência policial, especialmente, contra negros e pobres.

EMERSON ALCALDE: POESIAS EXPLORAM VIVÊNCIAS COTIDIANAS DOS JOVENS (Foto: Daniel Carvalho)

Fundado em 2012, o Slam da Guilhermina surgiu devido à dificuldade de Emerson em se deslocar até à zona oeste para assistir a eventos de poesia.

Enquanto o centro da cidade e as áreas nobres concentram variadas escolhas de entretenimento, a população da periferia precisa enfrentar horas de transporte público se quiser usufruir desse direito.

De acordo com o IBGE, a zona leste é a área mais populosa da capital: são 3,9 milhões de habitantes (35% do total de moradores da cidade). Ao mesmo tempo, é a região que menos possui equipamentos culturais.

“A ideia era fazer o slam chegar às pessoas, aos jovens, aos trabalhadores da zona leste. A escolha do lugar e do dia, sempre às sextas-feiras, fez do slam um ponto de encontro àqueles com poucas opções de cultura e lazer”

Emerson não está sozinho. Participam da organização do slam a professora Cristina Adelina, mestre de cerimônia das batalhas, e o artista Uilian Chapéu, responsável por cronometrar as apresentações e somar as notas dos jurados (são eles que aparecem ao lado de Emerson na foto que abre esta reportagem). O projeto se mantém com a venda de performances para eventos culturais organizados pelo SESC e prefeituras.

Ocupar um espaço público com palavras de tão forte teor político pode gerar conflitos, entretanto, o Slam da Guilhermina nunca sofreu com reclamações de comerciantes ou moradores das redondezas, muito menos com abordagens policiais. Mas a sorte não é a mesma para outros projetos de slam da cidade. Por diversas vezes, o Slam da Resistência, que reúne 200 pessoas na Praça Roosevelt, às segundas-feiras, sofreu com a repressão da polícia, que encerrava a competição com antecedência. Situação ainda pior vivenciaram os artistas do Slam do Tatuapé, que chegaram a ser revistados pela Guarda Municipal em uma noite de batalhas.

DAS RUAS PARA AS ESCOLAS

Ainda há a dificuldade de aceitação dessa poesia marginal, que rompe com a linguagem culta e valoriza as gírias. “Já ouvi críticas de pessoas ligadas à academia, que menosprezam a nossa poesia”, diz Emerson. “Mas pesquisadores e professores voltados à oralidade da nossa língua gostam e apoiam”.

DESDE 2015 SÃO REALIZADAS OFICINAS DE ESCRITA E LEITURA DE POEMAS EM ESCOLAS PÚBLICAS

Num formato de trabalho de base, desde 2015, Emerson organiza o Slam de Poesias Interescolar de São Paulo. São realizadas palestras sobre saraus periféricos e oficinas de escrita e leitura de poesias. Como o próprio nome sugere, promove-se também batalhas entre os alunos. As regras são as mesmas da competição oficial.

O projeto tem a capacidade não só de divulgar o movimento do slam entre os jovens, mas também de atuar naquilo que é mais valoroso: a formação de leitores e escritores conscientes. “O que a gente quer é incentivar o jovem a escrever, a colocar para fora o que sente, o que vê na sua realidade”, afirma Emerson.

O Slam de Poesias Interescolar de São Paulo já foi realizado em mais de 40 escolas, sendo a maioria na rede pública, todas na Zona Leste. A ação tem sido financiada pelo ProAC, o Programa de Ação Cultural do Governo do Estado de São Paulo.

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DE CHICAGO A PARIS

A palavra “slam” é uma onomatopeia que faz alusão a um som, por exemplo, de batida, algo que estoura. De acordo com Cynthia Agrada de Brito Neves, doutora em linguística, professora da Unicamp e estudiosa dos slams no Brasil, se tivéssemos que traduzir a palavra para o português, o equivalente seria a gíria “pá”.

As raízes históricas do slam tiveram início numa noite de 1984, no Green Mill Jazz Club, em Chicago. Foi lá que Marc Smith, um trabalhador da construção civil, criou um jogo improvisado e pediu ao público para julgar os poemas apresentados no palco – primeiro, com vaias e aplausos e, posteriormente, com pontuação numérica.

O evento acontece no mesmo bar até hoje, nas noites de domingo, e ficou conhecido como Uptown Poetry Slam. Rapidamente, a ideia ganhou adeptos (poetas e audiência) e se expandiu para além das fronteiras dos Estados Unidos.

Para Emerson, que já participou de slams na Argentina, Venezuela, Caribe e países da África, o maior envolvimento nacional acontece na França, onde foi vice-campeão mundial em 2014. A Copa do Mundo de Poesia Falada é uma iniciativa do próprio governo francês. Dura uma semana e costuma acontecer em dezembro, no Théâtre Belleville de Paris. A divulgação é massiva em televisão, jornais, rádio, outdoors e cartazes nas estações de metrô. As escolas organizam caravanas para levar professores e alunos para assistir ao evento.

No Brasil, a poesia falada começou no fim da década de 1990, como literatura marginal. Interligada aos universos do hip hop e sarau, a ideia se disseminou nos anos seguintes. Porém, a dinâmica ainda não era de batalhas.

Em 2008, pelas mãos de Roberta Estrela D’Alva, que foi terceira colocada na Copa do Mundo de Poesia Falada de 2001, o termo slam começou a se popularizar. Ela criou o ZAP! (Zona Autônoma da Palavra), em Perdizes, para abrigar eventos. Hoje, existem cerca de 40 movimentos artísticos desse tipo espalhados em São Paulo.

IMAGEM DE TOPO: Daniel Carvalho

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