Reportagem por Tiago Valentim Viana, Eduardo Mariano Silva, Kawan Noleto Cruz, Matheus Terceiro Daniel e Marcelo Coutinho Dantas, alunos do curso de jornalismo da Universidade São Judas Tadeu, parceira da Emerge Mag*
De segunda a sexta pela manhã, Padre Júlio Lancellotti, pároco da Igreja São Miguel Arcanjo, do bairro da Mooca, em São Paulo, acompanhado de sua equipe voluntária, distribui alimentos para mais de 120 pessoas em vulnerabilidade. A ação é feita na Rua Santa Augusta, na mesma região da Paróquia, nas calçadas próximas ao Núcleo de Convivência São Martinho Lima — um centro comunitário responsável por acolher sujeitos em situação de rua.
“Um dos principais sintomas da influência capitalista no agravamento da desigualdade é a aporofobia”, afirma o religioso. O termo se refere ao ódio, aversão e desprezo a pessoas pobres e menos favorecidas pelo sistema.
Lancellotti é reconhecido no Brasil por ser um combatente fervoroso desse tipo de preconceito e por estar à frente de vários projetos sociais que buscam trazer mais humanidade e dignidade para a população de rua. Quando questionado pelo caminho para solucionar um problema tão complexo, o religioso aponta um primeiro passo simples, mas muitas vezes esquecido: o da escuta.
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Ismael Martins, uma das pessoas acolhidas pelo trabalho da Paróquia, conta que começou a perceber o ódio e o desprezo direcionado pela sociedade a pessoas em situação de rua ainda na infância. Aprendeu com a avó, que o criou desde pequeno, a chamá-los de “maloqueiros” e “mendigos”. Hoje, adulto, vivendo nas ruas da capital, sabe que a realidade é muito mais complexa.
“Eu estou ali por que necessito ou será que eu gosto de ‘mendigar’?”, debocha ele.
Além das dificuldades diárias da vida na rua, Ismael está enfrentando problemas de saúde. Graças ao Sistema Único de Saúde (SUS), ele tem acesso aos medicamentos, mas as dificuldades de dieta dificultam o tratamento.
“Não posso tomar os comprimidos sem comer nada o dia inteiro. Como é que vou sobreviver assim?”
Em reforço a fala do padre, ele analisa: “dentre a pirâmide social, do mais alto ao mais baixo, tem pessoas estragadas e podres, mas as pessoas ricas jogam ovos nos pobres”.
ARQUITETURA HOSTIL E APOROFOBIA ANDAM JUNTAS
Ismael é uma das pessoas que convive com a arquitetura hostil, uma das principais características da aporofobia nas cidades, segundo Padre Júlio. Trata-se da prática de afastar pessoas em situação de rua de espaços públicos e privados através de construções planejadas, como: barras em bancos, espetos afiados em canteiros e pedras pontiagudas sob viadutos.
Padre Júlio afirma que a aporofobia se manifesta na especulação imobiliária. “A cidade é um conjunto de prédios e de condomínios fechados”, diz ele. “São espaços privados, em que ninguém diferente entra, que engolem os espaços públicos.”
A Lei 14.489 Padre Júlio Lancellotti, promulgada em dezembro de 2022, foi um importante marco na luta pela dignidade da população de rua. Ela proíbe essas construções e indica um canal de denúncias para envio de imagens e informações por parte da população.
Contudo, Lancellotti avalia que seus efeitos ainda são pequenos: “A lei está aí, mas vários municípios estão rejeitando”.
A UTOPIA É AGORA
Paulo Escobar, membro da equipe voluntária, explica, porém, que combater a arquitetura hostil é só uma face da luta contra a aporofobia. Ele cita algumas micro e macro revoluções urgentes. “Devemos alimentar o povo agora, ele carece de um lugar digno para morar agora”, defende. Em sua leitura, se o governo falha no suporte à população necessitada, é da sociedade a função de se organizar coletivamente na luta. “Deve haver a crítica, mas acompanhada de uma atitude. É urgente construir ações, tidas como utópicas, hoje.”
Escobar convive com a rua há 23 anos e conhece o Padre Julio há 16. Atualmente, coordena além do projeto Caminhos — ligado à locações e passagens de volta para as cidades nativas de pessoas que vivem na rua —, o Observatório da Aporofobia, organização que luta para que a prática seja reconhecida como um crime de ódio, assim como racismo e a homofobia.
“Queremos popularizar e descolonizar o termo ‘aporofobia”, para que mais pessoas se apropriem. Os conceitos precisam deixar de partir só da academia.”
No Brasil, segundo Paulo Escobar, o conceito só ganhou notoriedade graças ao Padre Júlio Lancellotti, que lutou pela tradução do livro e luta diariamente pelo fim da prática. “Temos que estimular um processo pedagógico, educativo, que busque diminuir a aporofobia. É preciso mostrar para as pessoas que o pobre não é culpado pela sua pobreza, existe um problema estrutural por trás dele”, conclui Padre Júlio Lancellotti.
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Criado pela escritora espanhola Adela Cortina, o termo é descrito em detalhes no livro Aporofobia, a Aversão ao Pobre: Um Desafio Para a Democracia (Editora Contracorrente, 2020). Pelo menos desde 1997, com a obra Ciudadanos del mundo: hacia una teoría de la ciudadanía, a filósofa já elaborava sobre a diferença de tratamento destinado às pessoas pobres.
Mas foi somente em 2017, com o lançamento do livro em espanhol, que o termo ganhou proporção, tendo sido escolhido como a palavra do ano pela Fundación del Español Urgente (Fundéu) e incorporado ao Diccionario de la lengua española no mesmo ano.
*Edição por Teresa Cristina
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