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Lage combina samba e rap no palco da sociedade

06/07/2020

Criado no mundo do carnaval, cantor radicado em São Paulo mistura ritmos para entreter e levar esperança aos seus

Criado no mundo do carnaval, cantor radicado em São Paulo mistura ritmos para entreter e levar esperança aos seus

Laroyê Mojubá! Para abrir uma matéria apresentando o cantor Lage, um filho de Exu com Ogum nascido em São João de Meriti, no Rio de Janeiro, nada mais justo do que saudá-lo. Na cultura iorubá nada é feito sem antes passar por Exu, o orixá dos caminhos.

“Pro alto e avante. Nem vem tentar me parar. Sai da minha frente que eu quero passar, mané” é o que diz a letra da música Junto com os Meus, e, desde que ouvi, virou meu lema de vida. Conheci o trabalho do Lage acidentalmente, rolando o feed do Instagram e virei fã logo de cara. Ao longo do tempo, o universo me trouxe a oportunidade de conhecer também Carlos Alberto, o ser humano por trás do artista: um cara determinado, inquieto, inspirador, engraçado, com um coração gigante e que – apesar de demorar para responder a entrevista –, compartilha várias figurinhas massa no Whatsapp (rs).

Nascido e criado em São João do Meriti, na Baixada Fluminense do Rio de Janeiro, o Lage é daquele tipo de artista que eu indico para todo mundo, não só porque o som é bom, mas também porque é visível o amor que ele coloca em seu trampo. E, vamo combinar, isso faz toda a diferença.

Sua paixão pela música nasceu dentro de casa, onde cresceu vendo e ouvindo histórias de seus familiares envolvidos com música. Seu avô é compositor; seu pai tocava cavaquinho; primos e tios são percussionistas e as primas já foram MCs de funk. O gosto pelo carnaval também é de família. Em tempos que a festa ainda não tinha sido embranquecida, seus pais e tios tinham muito envolvimento com a folia. Com o samba enraizado, aos 11 anos ele já era integrante da bateria da escola de samba meritiense Unidos da Ponte, fundada em 3 de novembro de 1952.

“Minha família é do Carnaval e do samba, minha mãe e meu pai foram de comissão de frente”, diz ele. “Ela também foi passista, num tempo em que passistas sambavam mais do que jogavam cabelo e mexiam os braços.”

LAGE: O AVÔ É COMPOSITOR; PAI TOCAVA CAVAQUINHO; PRIMOS E TIOS SÃO PERCUSSIONISTAS E PRIMAS FORAM MC’S DE FUNK

AS OPORTUNIDADES SÃO RACISTAS

Aos 12 anos, quando já ouvia rap, Lage pisou em São Paulo pela primeira vez. Na “terra de arranha céu”, percebeu que para ser parte da revolução voltada ao povo pobre (e para fazer o que queria), teria que se mudar para cá. Mas a meta só se concretizou aos 28 anos, quando se fixou em São Paulo de vez. Hoje, aos 32, ele é músico, percussionista, cantor e sambista – gosto de exaltar essa grandeza – e sabe que a música tem o poder de mudar e salvar vidas. No corre desde cedo, Lage já trabalhou em transportadora, foi promotor de vendas e vendedor – sempre conciliando os empregos com música. Somente nos últimos cinco anos, ele conseguiu atingir independência financeira para viver de sua arte.

“Ser artista no Brasil é ruim desde sempre”, afirma. “O brasileiro é doutrinado para gostar de famoso e não de artista”.

Num papo reto, Lage expõem os nuances que fazem com que alguns artistas sejam validado no mercado e outro não. Por exemplo, para conseguir espaço na rádio ou televisão, é necessário investir muito dinheiro – até hoje é comum artistas pagarem para ter suas músicas tocadas nas FM visando que a carreira deslanche. Além disso, o mercado prefere artistas que não se posicionem politicamente – a ideia é desvencilhar a estética da sua origem e ancestralidade para deixar a arte o mais vendável possível.

“Se você tem dinheiro, está tudo certo. Se você é branco, tá tudo certo duas vezes. Como eu não tenho a cara da aristocracia, fico ferrado. Basta ver quem são os artistas que estão ganhando dinheiro com gêneros populares, como o samba e o funk. São pessoas brancas que não se posicionam frente ao atual DesGoverno Federal para não perder público. Parecem que fingem não saber de onde veio o funk e o samba. E nem Ministério da Cultura temos mais. É treta”.

VEJA TAMBÉM: Além do samba e purpurina: Carnaval também é luta política

SAMBA RAP DUBOM

Tanto o Rap quanto o Samba saíram dos extremos periféricos. Esse é o ponto de intersecção entre os dois gêneros musicais. Retratar cotidianos e a dura realidade de quem vive à margem da sociedade sempre foi uma bandeira, seja de um jeito cadenciado, como o samba, ou de forma mais direta como o rap. E para quem é criado numa família preta e sambista, não tem como fugir disso – e digo por experiência própria.

Aos dez anos, Lage sentiu pela primeira vez o que é ter uma arma apontada para o rosto (e empunhada por um policial). Dois anos mais tarde, ao ouvir “Chora Agora, Ri Depois’’ do Racionais, a identificação foi orgânica. Aos 14, ele começou a escrever suas próprias letras já pensando em mesclar os dois ritmos.

AOS 11 ANOS, CANTOR TOCAVA NA BATERIA DA ESCOLA DE SAMBA MERITIENSE UNIDOS DA PONTE

“Quando ouvi o Acústico MTV do Marcelo D2, bateu. Depois, ao me deparar com Sujeito Homem II, do Rappin’ Hood, entendi o que era o Rap Brasileiro e aí abracei a causa”, diz Lage.

Sua primeira música que foi para a pista, a Junto com os Meus, que citei no início desta matéria, traz o encontro dos dois ritmos e a função social e política – presença marcantes tanto no samba quanto no rap.

A intersecção continua no último trabalho lançado por Lage, a música “9 Luas”, uma parceria com o sambista Leandro Matos. A letra fala sobre um Brasil com “z” e podemos identificar mensagens de críticas sociais, como narrativas do cotidiano das periferias; o genocídio do povo preto e uma homenagem a Matheusa e Marielle Franco. Viciada na faixa, a frase que mais me toca é “nosso povo vai vencer a covardia do fuzil”.  

A música também tem um videoclipe foda e cheio de significados. Gravado na Favela Galeria, na Vila Flavia, no extremo da Zona Leste, o lugar é cheio de potência e reúne muitos artistas independentes de diversas vertentes culturais. Vejo uma identidade brasileira salvaguardada nesse clipe, mas não vou dar spoiler, pois acredito que vale a pena você dar o play e gastar cinco minutos assistindo.

Falando em identidade brasileira, a música do Lage que mais gosto é “O Circo”, que começa com uma voz feminina dizendo “quem não sabe de onde vem, tende a se perder na hora de saber pra onde vai”. Toda vez que ouço, parece que escuto a minha vó dando um conselho para mim, uma coisa meio ancestral, ainda mais por ser um jongo, sabe?

A real é que a fala foi gravada pela mãe do Lage e, depois que eu descobri a história da música, passei a gostar ainda mais. A citação faz parte de um samba-enredo, que chegou ao final da disputa da Unidos da Ponte em 2009, e foi composto pelo seu avô Norival Fidelis (o Viludinho) e mais três parceiros que são lembrados no início da canção: Ambrósio, Luizinho Compositor e Mazinho Branco – os dois primeiros já falecidos. Na época, Lage não ficou muito contente com o resultado na final da agremiação e prometeu que as pessoas ainda ouviriam esse samba por aí. Só em 2018, quando decidiu cantar suas próprias músicas, conseguiu cumprir o prometido e deixar essa obra eternizada. Sempre que ouço essa em casa, vejo minha vó de 82 anos se identificando e dançando com ela. Lage, missão cumprida!

OUÇA: Emerge Rádio #4 por Felinto

RITMO, POESIA E PERCUSSÃO EM TEMPOS DE PANDEMIA

Segundo a Organização Mundial da Saúde, a arte influencia nossa saúde física e mental desde o nascimento até o fim da vida. Ela ajuda a lidar com tristezas, alivia a sensação de solidão e diminui os níveis de estresse.

Aposto que você está usando e abusando da Netflix nessa quarentena, né? Agradeça aos artistas. Tá ouvindo música? Arte. Ficou olhando para a arquitetura daquele prédio bonito que dá para ver da sua janela? Arte. Aprendeu uma make nova? Arte. Mergulhou nos livros? Arte. Viu uma novela? Arte. Em todos os cantos, para a nossa alegria, há arte e artistas empenhados em tornar esse momento um pouco menos doloroso.

LAGE COMO BATE-BOLA: NO INÍCIO DO SÉCULOS 20, NEGROS USAVAM MÁSCARAS PARA CURTIR FESTAS DE FOLIA DE REIS SEM SER BARRADOS

Lage diz que o principal papel do artista em um momento como esse é ser real, trazer o brilho do palco para o imaginário das pessoas e trocar ideia com o público.

“Ninguém vive sem arte. O consumo de arte aumentou na quarentena e a música chega, mais do que nunca, no lugar de entreter, informar e por um fio de esperança na vida de quem tá tentando desviar desse caminhão de problemas que a pandemia ampliou, somada à presença de um governo que não conhece seu povo e lucra com o caos”

Ter uma classe cultural que resiste é como uma pequena chama em meio ao breu que estamos inseridos nesse cenário pandêmico e sócio político. Para seguir na luta, o músico conta com o apoio da sua família e de outros artistas, que valem a pena acompanhar também: Rodrigo Pirituba, Melvin Santhana, Marina Afares, Hamilton Fofão, Negão da Serrinha, Funmilayo Afrobeat Orquestra, Leandro Matos, Vinicius Preto, Thata Alves e Samuca e a Selva.

“Esses nomes são alguns exemplos de várias artistas com que me relaciono profissionalmente”, diz Lage. “E, mais do que isso, são inspiração para meu corre”.

Uma vez que você é artista, as pessoas querem ouvir o que você tem a dizer, e eu acho importante que você tenha a responsabilidade no que vai falar. Além de trazer assuntos extremamente necessários, críticas sociais, racismo, ancestralidade, política e processo de embranquecimento do Carnaval, Lage imprime o que acontece no país e sempre dá o recado e aborda as causas em suas redes sociais, seja através de seus stories ou nas legendas de suas fotos que são verdadeiras aulas.

Para além de só assistir seus clipes ou ouvir suas músicas nas plataformas digitais, acompanhar e apoiar seu corre nas redes sociais é uma forma de compreendermos que para ele – diferente de muitos artistas – seu discurso não é palavras ao vento, é uma luta e sua forma de levar a vida. Que a trajetória do Lage seja grandiosa como ele merece e que seu trampo seja referência pra muita molecada desse país. Como diz o próprio: “desacredita não”.

Fotografias: Diego Carvalho

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