O que o Maracatu, a Congada e o Samba de Roda têm em comum? Além de serem referências na cultura popular brasileira, as três manifestações artísticas têm forte influência africana – sendo cada uma originária de um estado do Brasil.
Na quase infinita lista de expressões afro-brasileiras, uma das mais antigas é o Jongo. A dança, chamada de “avó do samba” por seus praticantes, os jongueiros, é embalada por percussão de tambores e acontece nas periferias urbanas e comunidades rurais de São Paulo.
Com aproximadamente 300 anos de história, a expressão artística chegou em terras brasileiras por meio dos Bantos, grupo étnico oriundo de Angola, Moçambique, Namíbia, Quênia, África do Sul, entre outros países africanos.
Assim como muitos outros povos pretos, eles foram trazidos como escravos para as fazendas de café no Vale do Paraíba, região que abarca os estados de São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais, tornando o ritmo presente em toda região sudeste, inclusive, no Espírito Santo.
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De acordo com Tita Reis, um dos líderes do coletivo Jongo dos Guaianás, de Guaianazes, bairro do extremo leste paulistano, a dança relatava a história dos negros escravizados nessas plantações:
“Nos pontos (músicas) de Jongo, os escravos escondiam recados e mandavam mensagens que os senhores não conseguiam compreender. Eles davam dicas de fuga, falavam sobre os quilombos. Era algo festivo, mas também uma forma única de comunicação”
CUMPRIMENTO AOS TAMBORES
A performance do Jongo tem início com o ritual de acendimento de uma fogueira e aquecimento, no fogo, dos tambores. Então, os músicos formam um grande círculo.
O primeiro passo rumo ao centro da roda deve ser feito após o cumprimento aos tambores, como um pedido de licença para entrar.
Assim, Emerge Mag também pede licença para falar sobre o Jongo.
Feitos de troncos de madeira e couro animal, os tambores são considerados verdadeiras entidades. Eles são elementos centrais da dança e consagrados pelos jongueiros.
“Jongo tem mistério
Tem mironga também
Se quiseres brincar, rapaziada
Com respeito faz bem”
Os pontos expressam de maneira musical e poética os versos cantados pelos jongueiros. Além de relatarem momentos do cotidiano, também envolvem uma relação com provérbios. Dessa maneira, apresentam uma conexão entre passado e presente. Monici Gomes, integrante dos jongueiros de Guaianazes, explica:
“As músicas são denominadas de ‘pontos’ pois remetem à costura: feita ponto a ponto, com uma pergunta e uma resposta, com um movimento seguido do outro”
Quando falamos da dança, é preciso saber que há várias formas de performá-la. Alguns passos são pré-determinados, como a coreografia da umbigada – um tipo de cumprimento entre os dançarinos que encostam seus umbigos.
Há também passos de improvisos e cada pessoa dança de um jeito próprio. Uns dançam rápido, outros devagar, uns rodando, outros arrastando os pés. Cada roda se torna única e especial.
É importante mencionar que as rodas começam muito antes do dia marcado. Há todo um ritual a ser seguido, pois é preciso preparar também a alimentação que será servida no encontro. Por todo seu significado, o Jongo não é uma religião, mas, sem dúvidas, carrega uma espiritualidade.
DIFERENTES NOMES, DIVERSOS ENCONTROS
Com o passar dos anos, diversas linhas de Jongo nasceram e se desenvolveram, de acordo com cada região do Sudeste. Dependendo da comunidade, o Jongo também pode ser chamado de tambor, caxambu, batuque e tambu.
Nesse contexto, o grupo de Guaianás segue a vertente Tamandaré, surgida na cidade de Guaratinguetá, no interior de São Paulo, onde é usado tambor barrica, feito de barril.
O Jongo dos Guaianás existe há 12 anos e é reconhecido, desde 2016, pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN). O grupo é formado por 11 adultos e 14 crianças e adolescentes.
No início, eles não se identificavam oficialmente como um grupo de Jongo, pois para isso é necessário toda uma vivência e conhecimento.
Naquela época, os integrantes do coletivo foram conhecer mais sobre a dança em uma edição do Revelando São Paulo, festival de cultura tradicional que acontece quatro vezes ao ano.
Lá, eles receberam a benção do Mestre Chico, jongueiro mais velho que permitiu o grupo entrar no universo do Jongo.
Hoje, existem em São Paulo comunidades de jongo com séculos de existência.
Devido a isso, o Jongo dos Guaianás se considera aprendiz e é apadrinhado pelo grupo de Tamandaré, que possui mais de 100 anos e tem ancestralidade direta de povos escravizados.
Vale frisar que o Jongo é uma forma de louvação aos antepassados, consolidação de tradições e afirmação de identidades – e o respeito aos ancestrais é intrínseco à manifestação.
DA PERIFERIA PARA A PERIFERIA
Qual é o melhor lugar para movimentos ancestrais e negros acontecerem em grandes cidades? Se você cogitou nas periferias, está certo. Nas metrópoles, a maior concentração de afro-brasileiros está nesses locais – e com isso podemos entender o poder e a importância da ancestralidade. Ana Paula, integrante dos Guaianás, manda a real:
“O Jongo pode nascer na Vila Madalena? Pode. Mas a representatividade na periferia é mais forte devido à maioria das pessoas serem pretos e pretas, conscientes de sua identidade e ancestralidade”
Outro fator fomenta o surgimento de expressões culturais na periferia e para a periferia: a carência de incentivo à cultura.
De acordo com o Mapa da Desigualdade de 2018, mais de 50% dos distritos paulistanos não possuem tipo algum de equipamento cultural.
Além disso, há enorme desigualdade na distribuição de espaços culturais.
Considerando, por exemplo, a categoria Casas de Shows e Concertos, o indicador do bairro de Pinheiros é de 92,61. Em Guaianazes é 0. [A fórmula do indicador consiste no número total de salas dividido pela população vezes 100.000].
A falta de acesso faz com que as próprias comunidades se organizem para ter mais experiências culturais em locais próximos às suas casas – um exemplo é o surgimento e popularização dos bailes funk. Para Tita, com o Jongo dos Guaianás, isso não é diferente.
“Além de ser um espaço de acesso à cultura, lazer e entretenimento, é importante o Jongo acontecer na periferia para que as pessoas saibam que aqui é um local de identidade. Aqui é um espaço de resistência política, resistência negra e resistência feminista”
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E AS POLÍTICAS PÚBLICAS?
O Jongo dos Guaianás é a única comunidade reconhecida pelo IPHAN na cidade de São Paulo. O papel do instituto é proteger e promover os bens culturais do país para que as futuras e presentes gerações possam conhecê-los e aproveitá-los.
O jongo por si só já era patrimônio imaterial brasileiro desde 2005. O reconhecimento aconteceu devido a um movimento de união de comunidades jongueiras, que aconteceu a partir dos anos 90.
Entretanto, ainda faltam políticas públicas voltadas à difusão e preservação do jongo. A maioria das comunidades praticantes movimenta o Jongo por meio de renda própria ou realiza vendas de produtos para promover os encontros.
“O patrimônio tombado necessita de políticas públicas que apoiem sua sobrevivência”, afirma Monici.
Anualmente, comunidades escolhidas pelos mestres da dança, responsáveis por guiar os grupos e ensinar seus fundamentos, organizam os Encontros de Jongo, com participação de 13 grupos, somando cerca de 400 pessoas.
Por mais que o Brasil seja o país mais negro fora do continente africano, o respeito, conhecimento e tolerância para com expressões de culturas e religiões de matriz afro ainda estão longe do ideal.
Muitas pessoas, ao verem um tambor, associam à “macumba”, num sentido negativo.
Quando o Jongo chegou na comunidade de Guaianazes, num primeiro momento, as pessoas sentiram certo estranhamento.
De acordo com Clodoaldo Rocha, o Corró, também membro dos Guaianás, houve muita curiosidade dos moradores do bairro até entenderem o que era o jongo. E casos de intolerância aconteceram
“Houve pessoas que demonstraram total preconceito com o tambor e trataram a manifestação como algo ruim”, diz Corró.
Esse movimento mostra o quanto é importante que esse tipo de cultura resista, ampliando a visão de mundo e da própria realidade das pessoas que tenham contato com ela. Cultura é multiplicidade.
IMAGENS: João Grijo, com edição de Rogério Henrique.