Marca de moda de Guarulhos ‘África Plus Size’ reúne estilistas e modelos para fomentar o empoderamento e liberdade de corpos gordos e pretos
Em outubro, a cantora e criadora Rihanna abalou o mundo da moda com o lançamento da segunda edição do SavagexFenty Show, filme musical de sua marca de lingerie que esbanjou pluralidades de corpos. Como artistas convidadas, participaram do show Lizzo, Paloma Elsesser e Tabria Majors que trouxeram à tona o talento e a sensualidade das mulheres pretas e gordas. O trio têm biótipos que rompem o padrão eurocêntrico comum das passarelas: branco, magro e alto.
O SavagexFenty Show foi tudo mesmo, mas agora vou contar uma história (pasmem): sabia que desde 2016 acontece em Guarulhos o África Plus Size Fashion Week Brasil, evento de moda que reúne estilistas e modelos pretas e gordas para fomentar a beleza a criatividade de mulheres periféricas?
Por trás da iniciativa está Luciane Barros, a Lu Big Queen, e um time de criadoras potentes que integram o coletivo e marca de moda África Plus Size, que desenvolve roupas com posicionamento repleto de misturas étnicas, diversidade cultural, liberdade e respeito.
O projeto nasceu em 2013 no mundo virtual. A ideia era contemplar mulheres que não se viam representadas na indústria da moda e tinham dificuldades para comprar roupas de design em tamanhos grandes. Devido ao sucesso da marca no digital, a Africa Plus Size migrou para o mundo físico e se tornou uma plataforma multicultural voltada a questões étnicas e sociais para mulheres reais, que também movimentam o mercado de moda. De acordo com a consultoria de inteligência de mercado IEMI, o varejo de vestuário faturou cerca de R$ 229,5 bilhões em 2019. Ao mesmo tempo, os consumidores periféricos do Brasil têm um potencial de consumo de R$ 168 bilhões por ano, segundo a empresa de publicidade Outdoor Social.
Hoje, além do desenvolvimento e venda de produtos, a África Plus Size oferece uma gama de serviços, como assessoria, produção de eventos, casting de modelos e projetos culturais. O foco do trabalho continua baseado nos pilares de acessibilidade, inclusão, empoderamento e criação de identidade. Entre os clientes estão o São Paulo Fashion Week, o Instituto C&A e a Laudes Fondation, organização de empreendedorismo e investimento social privado. Outras empresas também contratam a África Plus Size para realização de palestras sobre autoestima da mulher gorda, empreendedorismo da periferia e gordofobia.
NOSSOS PASSOS VÊM DE LONGE
Luciane iniciou sua carreira no mundo da moda como modelos aos 29 anos, quando participou de um concurso do Carnaval de São Paulo em 2011. Desde aquela época, ela questionava os padrões de moda desenvolvido para mulheres que usam tamanhos grandes. “Queria peças com estilo contemporâneo, mas as marcas com numeração EX não atendiam as minhas expectativas e desejos de moda”, afirma ela.
Outro fato que a incomodava era o mercado não dar espaço para mulheres negras. Se para modelos brancas plus size o nicho de trabalho era restrito, a situação era ainda mais complicada para as modelos negras se firmarem na carreira. Se tem uma coisa que eu – Cíntia, a repórter que vos escreve – aprendi nos últimos anos é que não há mudança sem movimento e luta. E, frente a uma estrutura que perpetua preconceitos e aversão a pluralidade de corpos e vivências, o lance é nós mesmas nos unir para criar nossos próprios espaços de poder e acolhimento – e foi isso que Luciane fez.
A CEO da África Plus, além de modelo, atuava como produtora cultural, internacionalista, dançarina e influencer. Ela, então, trouxe outras mulheres pretas com atuação no mercado de moda e cultura de periferia para somar no projeto. São elas: Viviane Junqueira, antropóloga, aromaterapeuta e instrutora de meditação; Gabriela Alves, fotógrafa, designer e relações públicas que faz curadoria de brechós e gestão de mídias sociais; Val Araújo, formada em sistemas de informação, mas que trabalha como musicista e cantora; Japhette Ozias, designer beninense que mora no Brasil desde 2012 que pesquisas referências africanas; Patrícia Hilário, produtora cultural e empreendedora na Patty Moda Plus; Adriana Carvalho, estilista, consultora de estilo e fotógrafa; e Beatriz Helena, cozinha, artesã e publicitária. Viviane explica como o coletivo trabalha:
“A África Plus Size é um negócio que busca a sustentabilidade por de produtos e conteúdos étnicos e de moda plus size para os dois maiores e mais potentes consumidores nacionais: a população gorda e a população negra”
De acordo com uma pesquisa realizada pelo Ibope em 2017, a gordofobia faz parte da rotina de 92% dos brasileiros, mas apenas 10% assumem possuir algum tipo de preconceito com pessoas gordas. No entanto, infelizmente, esse movimento vai além de xingamentos. Entre as dificuldades enfrentadas no cotidiano estão comprar roupas; passar na catraca do ônibus; ter acesso a assentos confortáveis em locais públicos; entre outras situações que também configuram gordofobia.
Outro ponto é a pressão estética. Devido a questões sociais, típicas de uma sociedade machista e patriarcal como a brasileira, é imposto às mulheres um padrão de corpo magro (irreal e desumano). “As mulheres sofrem pressão estética porque somos bombardeadas constantemente com imagens que determinam um tipo de corpo ideal”, comenta a atriz e comunicadora Mariana Xavier, em um vídeo com a youtuber de moda, lifestyle e relações raciais Luciellen Assis. Na gordofobia há também a privação de acesso e, consequentemente, de direitos. Num pensando interseccional, é importante entender as separações e os impactos diante de diferentes corpos, etnias e classes sociais.
COLABORAÇÕES HUMANAS
Durante o auge da pandemia de Covid-19 em São Paulo, a África Plus Size produziu e distribuiu mais 2.000 máscaras de proteção nos bairros Jardim Santos Dumont e Pimentas, em Guarulhos. Ao mesmo tempo, o coletivo realizou lives nas redes sociais para orientar mulheres negras e gordas trabalhadoras da moda com foco em geração de renda. “Mesmo diante de um cenário tão nebuloso, conseguimos organizar ações conjuntas para beneficiar nossa comunidade”, afirma Viviane.
Uma das principais parceiras da África Plus Size é o Atêlie TRANSamoras, que desenvolve consultoria em projetos e discussões sobre moda, sustentabilidade, estética, direitos, gênero e sexualidade. Fundado em 2013 em Campinas, o Transamora é voltado a upcycling, técnica de reutilização criativa de materiais que seriam descartados para transformá-los em novos produtos. O coletivo é responsável por todas as etapas de criação de coleções da marca VP, uma organização de travestis fundada pela estilista Vicenta Perrota. Entre outros eventos, o Transamora participou do desfile-performance “Brasil: o país campeão mundial de travestis” na 46ª Casa de Criadores, em que participaram 12 pessoas trans do mundo da moda, realizado em dezembro de 2019.
“As ações do Transamora questionam o papel das pessoas na estrutura transfóbica em que estamos inseridas, seja no lar, na rua e, claro, na moda”, diz Viviane, que também integra os dois coletivos.
De acordo com a Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), apenas 4% da população trans feminina está em um emprego formal, com possibilidade de promoção e crescimento de carreira. A moda é uma catalisadora de comportamentos que vive uma dicotomia: tem o poder de perpetuar padrões ao mesmo tempo que pode ser usada para destruí-los. E é na segunda frente que a Africa Plus Size e o Transamora estão inseridas: o belo e o fashion de receber e fomentar a beleza de todos os tipos de corpos.
FOTOGRAFIAS: Rafael Felix
Esta reportagem integra o projeto Mapeamento de Coletivos e Produtores Culturais da Região Metropolitana de São Paulo e conta com apoio do Edital ProAC nº 14/2019, de incentivo ao desenvolvimento da cultura popular, tradicional, urbana, negra, indígena e plural no Estado de São Paulo. Veja outras reportagens da série:
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