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Dança de origem japonesa, com movimentos lentos e corpos contorcidos pintados de branco, é explorada pelo Núcleo Experimental de Butô

Conhecida como a dança das trevas, dos mortos, dos desobedientes e desajustados. Das entranhas da terra e do cosmos. O butô é uma prática instigante e imersiva que surgiu no Japão pós-Segunda Guerra, mas é tão profundo que parece ancestral. Mais que uma dança, é um projeto de vida, a revolta do corpo sufocado pelas estruturas que nos moldam, a destruição dos pilares que sustentam o ser humano civilizado. A prática se expandiu para além do Japão e, apesar de não ser tão conhecida, segue inquietando criaturas pulsantes rebeldes pelo mundo afora.

Aqui no Brasil um dos grupos mais ativos na cena é o Núcleo Experimental de Butô, um laboratório cênico-performático da zona norte de São Paulo que investiga, seis décadas após sua fundação em Tóquio, os desdobramentos dessa dança no país.

Núcleo Experimental de Butô 1
O NÚCLEO EXPERIMENTAL DE BUTÔ PROPRÕE UMA DANÇA QUE OLHE PARA O AQUI E AGORA PARA ENTENDER O PRÓPRIO CORPO

O projeto é resultante da dissertação de mestrado “(Po)éticas do ctônico: primeiros movimentos do butô no Brasil” (UNICAMP), de Thiago Abel, coordenador do núcleo, que a partir de 2014 resolveu compartilhar seus longos anos de estudos solitários com uma multiplicidade de corpos desejantes de movimento, experienciando as possibilidades investigadas e testando o impacto que poderiam provocar na vida, na coletividade e no mundo.

Segundo Thiago, a proposta do grupo é encontrar portas de acesso a essa manifestação artística, pois há ainda muitas inquietações não exploradas, e que permanecem relevantes à sociedade atual. Ele comenta:

“Mais do que dançar butô, o objetivo do núcleo é encontrar um caminho de dança que esteja afinado com as éticas e poéticas deste projeto político-artístico”

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LEIA MAIS: As danças encantadas do Núcleo Experimental de Butô

DESTRUIÇÃO DO SOCIAL PARA ACESSAR A CARNE

Fundado por Tatsumi Hijikata no final dos anos 50 e tendo Kazuo Ohno como principal colaborador, o butô tornou-se conhecido por determinados padrões de movimentos e aparatos estéticos, como os movimentos lentos e os corpos contorcidos pintados de branco. No entanto, a provocação que o Núcleo Experimental traz é olhar para o aqui e agora, entender esse contexto e o próprio corpo, as memórias daqui e de si, ao invés de importar e reproduzir uma visualidade sem reflexão.

“Todo o processo criativo da dança butô é um disparador das potências de cada corpo, de cada singularidade”, diz Thiago.

Cada pessoa traz para a dança a sua poética, uma fonte baseada na vivência de cada ser. Hijikata falava na destruição do shintai (corpo-social) para acessar o nikutai (corpo-carne). Ao deixar de dar atenção às camadas mais superficiais e cotidianas da existência, o que é mais profundo vem à tona, e a ação direta de dançar torna-se um fluxo manifesto de ser dançado. As oficinas, oferecidas mensalmente pelo núcleo, fazem bem esse trabalho: são imersões onde dançamos durante tempos prolongados, vivenciando atravessamentos no próprio corpo em jornadas únicas, onde descobrimos novos eus e tantos outros que podemos nos tornar.

“É preciso ter o caos dentro de si para gerar uma estrela dançante” – Friederich Nietzche.

Como o próprio nome diz, o Núcleo Experimental de Butô é um território de experimentos. Aliado ao pensamento de Hakim Bey e seu Terrorismo Poético, bebendo da fonte das inspirações de Hijikata como a Literatura Maldita e a exploração do Devir-Criança, investigando também figuras de Povos Originários como os Anhangás, o núcleo realiza oficinas; happennings nas ruas (juntar uma galera pra dançar no improviso), aos moldes que Hijikata idealizava nos primórdios do butô; performances; grupos de estudos; intervenções urbanas e o podcast Corsários. Entre as montagens do núcleo estão o “Laboratório de Criação de Solos” e o espetáculo “Até a lembrança do cachorro do vizinho ainda vive no meu corpo”, contemplado pelo Proac Primeiras Obras.

Núcleo Experimental de Butô 2
INTERVENÇÃOS URBANAS JÁ ACONTECERAM EM CIDADES COMO SÃO PAULO, TIRADENTES, FORTALEZA E LONDRINA

O grupo já fez ações no cemitério da Consolação; nas ruas em todas as estações da linha lilás do metrô e em toda a região central de São Paulo; passou por cidades como Tiradentes, Londrina, Fortaleza, Belo Horizonte, Rio de Janeiro com intervenções nas ruas e oficinas; apresentou palestras no México e Peru; participou do lançamento do livro Testo Junkie, de Paul Preciado pela editora n-1; fez apresentações em espaços como a Oficina Cultural Oswald de Andrade, Centro de Referência da Dança e Escola Livre de Teatro de Santo André, em universidades como a PUC-SP e Unicamp e no parque Água Branca, onde acontecem as zonas laboratoriais ao ar livre.

CORPOS QUE PULSAM

O núcleo é formado por três frentes: criação, pesquisa e formação, e em articulação com todas as regiões do país, já alcançou cerca de mil pessoas que participaram ativamente das oficinas e pesquisas do coletivo. Em sete anos de existência, o núcleo através das práticas e aprofundamentos teóricos contextualizando o conteúdo ético, poético e político da dança, alterou o entendimento que existe acerca do butô no Brasil, tornando-se referência no assunto, impactando nas artes da cena e atraindo pessoas que não se dizem artistas – apesar de essa ser uma longa discussão –, como muitas pessoas da psicologia, principalmente do corpo estudantil de Psicologia Clínica da PUC-SP. Atualmente, os principais colaboradores do núcleo são: Are Bolguese, Bruno Maschio, Caio Picarelli, Daniel Aleixo, Luisa Moreira e Yasmin Berzin. Eu, este ser que aqui vos escreve, fiz parte do núcleo de 2015 a 2019, e foi uma das experiências que mais me transformou na vida, abalando todas as minhas estruturas pra deixá-las mais firmes de outra maneira.

“Butô é o cadáver que se coloca de pé, arriscando a própria vida”

TATSUMI HIJIKATA, DANÇARINO

Como é de se imaginar, as atividades do núcleo foram bastante afetadas durante a pandemia. O desafio de sempre – de sobreviver e se dedicar integralmente ao trabalho – tornou-se mais dificultoso ainda. Porém, Thiago não deixou a peteca cair e manteve as oficinas de voz e terrorismo poético adaptadas para o modo online. Os encontros presenciais vão sendo negociados a cada mês verificando a viabilidade e segurança das pessoas participantes. Uma das novidades que tem estimulado Thiago é o grupo Caóticos Anônimos, segundo ele, uma plataforma de sobrevivência criada em tempos pandêmicos pirateando o formato de programas de 12 passos, como o do Alcoólicos Anônimos.

“Aprender com outro e cuidar deste outro para além das palavras, presenteando-o com o melhor de nós: nossas criações”, afirma Thiago. “Ser presenteado diariamente pelo simples fato de estarmos vivos, pulsando e pulsando e pulsando.”

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NÚCLEO ATUA EM CRIAÇÃO, PESQUISA E FORMAÇÃO

No entanto, engana-se quem pensa que é um encontro gratiluz-paz-e-amor. Thiago manifesta no depoimento a seguir a essência desses encontros e do próprio núcleo:

“Arte-Terapia de cu é rola. Estamos diante um sarau apocalíptico que contempla a fome de vida de cada pessoa durante o fim do mundo. Um Laboratório alquímico onde cada pessoa é rato de seu próprio laboratório, um cadinho fervilhando sobre brasas desconhecidas, cambiando do ouro ao chumbo, do chumbo ao ouro, do caos à lama, da lama ao caos. Se Deus está morto e se cada um de nós já é o Faraó de seu próprio deserto, façamos uma festa para celebrar com irmãozinhes tão órfãos quanto nós. Papai e Mamãe se foram, mas a delícia do amor incestuoso sempre nos aquecerá. Venha celebrar o pouco ou o muito do que ainda pode ser criado e vivido”

O projeto político-artístico de Hijikata que o Núcleo procura manter vivo parte dessa negação do projeto eurocêntrico de beleza, disciplina e bons modos, e abre caminho para a dança dos seres dissidentes, marginalizados, esquecidos, apagados. Em tempos apocalípticos, dancemos o caos para nos manter de pé.

FOTOGRAFIAS:  Arquivo Núcleo Experimental de Butô

Esta reportagem integra o projeto Mapeamento de Coletivos e Produtores Culturais da Região Metropolitana de São Paulo e conta com apoio do Edital ProAC nº 14/2019, de incentivo ao desenvolvimento da cultura popular, tradicional, urbana, negra, indígena e plural no Estado de São Paulo. Veja outras reportagens da série:
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