A Okupação Cultural Coragem mantém uma galeria de arte e reúne diversos coletivos de arte e cultura na zona leste de São Paulo. No entanto, desde 2018, eles lutam contra uma reintegração de posse
A história do distrito Jose Bonifácio, na zona leste de São Paulo, é repleta de curiosidades. A região começou a ser ocupado na década de 1920 por imigrantes japonesas que plantavam ameixas e pêssegos. Logo, começou a ser chamada de “Terra do Pêssego”, apelido que deu nome à avenida Jacu Pêssego, importante via da região. Em 1981, foi fundado o Conjunto Habitacional José Bonifácio, conhecido como Cohab 2 e lembrando na música De Esquina, dos rappers Xis e Dentinho. O conjunto atraiu muitas famílias, grande parte negras e de origem nordestina. Nos anos seguintes, os moradores tiveram que lutar por saneamento básico, iluminação, transporte coletivo e equipamentos de saúde. No entanto, as demandas ainda não acabaram. Num distrito com mais de 130 mil habitantes, existe apenas um equipamento cultural público, a Casa de Cultura Raul Seixas.
Por outro lado, desde 2016, moradoras e moradores da região criaram a Okupação Cultural Coragem, uma galeria de arte e ocupação cultural que abriga onze coletivos, como os projetos de incentivo à leitura e biblioteca comunitária Calçada Literária e Gibiteca Balão; e o Homens em Movimento, voltado a performances artísticas com foco no combate ao machismo. O nome do coletivo, além de remeter a perseverança, é a sigla Coletivo, Ocupação, Revitalização, Arte, Grafite, Educação e Música. Hoje, estão a frente da Okupação Cultural Coragem Nisia Oliveira, Kido Panontim, Michele Cavalieri, Mauro Grilo e Marcello Nascimento.
Antes pandemia de Covid-19, a programação da Okupação Cultural Coragem era vasta e incluía exposições, rodas de conversa, shows e eventos esportivo. Nos últimos meses, com as medidas de isolamento social, as atividades presenciais foram interrompidas e o coletivo focou lives artísticas semanais e ações de solidariedade, como a distribuição de mais de mil cestas básicas para pessoas em situação de vulnerabilidade.
Acontece que, além do coronavírus, outra ameaça tem rondado a Okupação Cultural Coragem. Desde 2018, a galeria segue em estado de alerta devido uma ordem judicial que determina a desocupação do espaço. O imbróglio jurídico-social acontece porque o coletivo está instalado num galpão pertencente à Companhia Metropolitana de Habitação (Cohab-SP), empresa da prefeitura de São Paulo responsável por projetos de moradia popular nas periferias. Antes do coletivo transformar o local numa zona autônoma de cultura e arte, o imóvel estava abandonado por mais de 15 anos. Em 2018, houve uma audiência na Justiça que não deu ganho de causa a nenhum dos lados. Porém, em setembro de 2020, foi emitida uma ordem de despejo. Enquanto aguardam a análise do recurso, o coletivo fez um abaixo-assinado para reivindicar a cessão de uso e sua permanência no espaço. Até agora, já foram colhidas 2.175 assinaturas na plataforma Avaaz. Nisia comenta o panorama:
“A Okupação Cultural Coragem enfrenta desafios diariamente. Sofremos com o descaso do poder público e estamos respondendo a um processo de reintegração de posse”
De acordo com informações publicadas no site Periferia em Movimento, a Cohab-SP afirma que o coletivo tentou regularizar a ocupação, mas antes que o Termo de Permissão de Uso fosse oficializado, houve mudança administrativa em 2017 e que, na ocasião, foi aprovado o novo Regulamento das Entidades Sociais. Além disso, a Cohab-SP informou que a Okupação Cultural Coragem não cumpre o artigo 7º do regulamento, que exige o convênio com órgãos da administração direta nos âmbitos municipal, estadual ou federal, o que motivou o pedido de reintegração de posse.
De acordo com a Okupação Cultural Coragem, a organização já se enquadrou no regulamento e recebeu reconhecimento como Ponto de Cultura pela Prefeitura de São Paulo. Recentemente, o coletivo foi selecionada no primeiro edital de Premiação de Coletivos Culturais que realizam a Gestão Comunitária de Espaços Públicos Ociosos da Secretaria Municipal de Cultura, que reconhece a função social das ocupações culturais e garante a manutenção e realização de ações durante um ano.
DA PERIFERIA PARA A PERIFERIA
Desde 2016, a Okupação Cultural Coragem realizou doze exposições de arte urbana e uma iconográfica, que contou a história do distrito José Bonifácio e foi visitada por mais de mil pessoas. A galeria de arte também possui parcerias com escolas para receber visitas de alunos do ensino básico e superior e com instituições que atendem adolescentes que cumprem medidas de liberdade assistida.
A ocupação também abriga iniciativas de comunitárias, como bazar solidário, encontros intersetoriais com esporte, saúde, educação, assistência social, direitos humanos com foco em gênero e étnico racial e mantém parceria com a Subprefeitura de Itaquera e outras instituições.
Entre os coletivos que utilizam o espaço, há uma diversidade de linguagens, como teatro; dança; artes visuais; literatura; cultura nerd e música de diferentes gêneros, entre eles rock, rap e jazz. Na programação, há eventos periódicos mensais e semanais, como o Reação Hip Hop, que congrega música e poesia e acontece todas as segundas-feiras. Todas as atividades da ocupação são gratuitas para a comunidade.
Há poucas semanas, o coletivo organizou o ato Vidas Pretas Importam. O evento de combate ao racismo teve participação do coletivo de bonecos de rua e cordão musical Sucatas Ambulantes; projeções do Coletivo Coletores (já perfilado pela Emerge); dança com o Coletivo Break na Praça e esporte com o coletivo de skate Love CT. O ato teve cobertura fotográfica de Rafael Felix, integrante da Emerge Mag.
A história da Okupação Cultural Coragem me remeteu ao livro A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado, do teórico revolucionário Friedrich Engels. A obra publicada em 1884 aborda o modo de vida desenvolvido no período paleolítico ( 2.5 milhões – 10.000 a.C.), quando ainda não existia agricultura e a espécie Homo tirava sua subsistência da caça, pesca e coleta de frutos e raízes. Naquela época, não havia classe social e todos os alimentos eram divididos entre a comunidade. Se a “arte é alimento da alma”, então que haja coragem para que ela seja compartilhada sem barreiras e hierarquias.
FOTOGRAFIAS: Rafael Felix
Esta reportagem integra o projeto Mapeamento de Coletivos e Produtores Culturais da Região Metropolitana de São Paulo e conta com apoio do Edital ProAC nº 14/2019, de incentivo ao desenvolvimento da cultura popular, tradicional, urbana, negra, indígena e plural no Estado de São Paulo. Veja outras reportagens da série:
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