O livro The Little, Brown Book of Anecdotes (O Pequeno Livro Marrom das Anedotas, em tradução livre), de Clifton Fadiman, conta que logo após a Segunda Guerra Mundial, Pablo Picasso recebeu a visita de uma milionária americana em seu estúdio. Ela ficou em frente a uma de suas obras por vários minutos até que perguntou: “o que exatamente isso representa?”. Sem hesitar, Picasso respondeu: “duzentos mil dólares”. Picasso sabia que era um grande pintor, mas sabia também que só essa habilidade, por si só, não seria suficiente para pagar os boletos no final do dia.
E como transformar habilidades criativas em negócios sustentáveis? A Cápsula Inovação tem a resposta. Fundada em 2017, a consultoria criativa é especialista em inovação, cultura e gestão e auxilia empresas, coletivos e projetos a terem uma visão holística para criar estratégias, táticas e operações para alcançar sucesso nos negócios.
Os serviços da Cápsula estão divididos em duas frentes. A primeira é de consultoria e mentoria, onde é ensinado a como utilizar a criatividade de estruturada para identificar problemas e suas soluções por meio de indicadores confiáveis e mensuráveis. A segunda frente é de cursos e oficinas focadas em planejamento, gestão e comunicação. Na prática, a Cápsula ajuda o empreendedor cultural a gerar renda e viver de sua arte.
Um lance bacana e que faz diferença é que a Cápsula também é uma iniciativa de dois jovens empreendedores da área da cultura: a produtora cultural Camila Couto, cofundadora do Festival Diversa, iniciativa que promove o empreendedorismo LGBTQI+, e da Ocupação Mulheres Protagonistas, voltada a mulheres artistas; e o designer Ítalo Martins, também cofundador do Festival Diversa e que já atuou como mentor de startups do Sebrae-SP.
Seguindo o mantra do mundo dos negócios “uma ideia vale um dólar, uma boa execução vale um bilhão”, quais são os desafios iniciais de empreender na economia criativa?
De acordo com Camila e Italo, profissionais da cultura, em geral, não exercitam uma visão de negócios sobre sua arte e ainda resistem a enxergar seu fazer artístico como um produto a ser vendido e consumido. Muitos acreditam, inclusive, que adentrar o mundo dos negócios pode corromper o seu propósito e esvaziar a reflexão crítica do seu trabalho. Por mais romântico que possa parecer, esse tipo de pensamento cabe mais àqueles que pertence a categoria “Artistas Herdeiros”, com origem em famílias ricas. Para aqueles que vivem do corre, a arte é a sua sobrevivência. Camila comenta:
“Decidir viver de arte é um ato de empreendedorismo. Quando a gente fala da apropriação de técnicas e ferramentas do mundo dos negócios para o trabalho cultural, estamos falando sobre organizar seus empreendimentos e impulsionar seus trabalhos de forma sustentável para gerar receita e atrair novos investimentos”
PEQUENOS ARTISTAS & GRANDES NEGÓCIOS
Foi da observação do quanto de valor que artistas deixavam na mesa por conta de suas limitações em gerir o subjetivo e o simbólico que Camila e Italo criaram a Cápsula.
Os jovens se conheceram em 2015, quando mudaram-se para São Paulo. Camila nasceu no interior do estado Paraná; enquanto Italo nasceu em Belo Horizonte, em Minas Gerais. Na capital paulista, eles participaram do projeto Agentes Locais de Inovação, do Sebrae em parceria com o CNPq, para capacitar profissionais e fomentar a cultura da inovação em pequenas empresas.
No decorrer do treinamento, de 30 meses, eles reconheceram similaridades de vivências, lugares de fala e de formação – aí a amizade floresceu. Camila é lésbica, gestora cultural e artista, com passagem em grupos de teatro como atriz e diretora, além de atuar como produtora de eventos, como no “Agora Vai”, ação em parceria com a TransEmpregos que contou com o apoio de mais 14 organizações que selecionaram pessoas trans para oportunidades de trabalho. Por sua vez, Italo, gay, é designer de serviços, com experiência em facilitação de processos de Design Thinking, tendo contribuindo em programas de aceleração de negócios de impacto como o Baanko Challenge e a Startup Weekend. Italo comenta:
“O serviço de consultoria partiu da ideia de levarmos cápsulas de transformação para impactar negócios e as pessoas por trás deles. Ao mesmo tempo, repassar nosso conhecimento é uma forma de aprender e criar redes com diversos empreendimentos culturais”
Em 2020, uma das clientes da Cápsula foi a ilustradora, designer e quadrinista Sophia Andreazza. Ela precisava entender os diferenciais do seu trabalho no mercado e desenvolver uma estratégia de comunicação para a sua marca. Ao longo da mentoria, foi realizada a estruturação da proposta de valor, criação de modelo de negócio e um plano de ação estratégico da artista.
“O que mais me impressionou na Cápsula foi a naturalidade da mentoria”, diz ela. “Conforme conversávamos, as nuances do meu trabalho ficavam claras e, a partir disso, fica muito mais fácil definir os caminhos a serem seguidos.”
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O ESTADO COMO FIADOR DA CULTURA
Um artista que se propõe viver de sua arte não é diferente de qualquer outro trabalhador. Muitos gastaram tempo e dinheiro em formação e trabalham duro para conquistar clientes. Só isso já justificaria merecerem ter seus investimentos recompensados e seu trabalho bem remunerado. Porém, muitos são mal pagos (ou nem recebem cachês) devido ao sendo comum de desvalorização de trabalhos criativos – é daí que nasce, por exemplo, ofertas de remuneração por divulgação (e não dinheiro).
Frente ao panorama, Camila afirma que o protagonismo na valorização e financiamento da arte deve ser do Estado. “Como é possível um coletivo realizar apresentações gratuitas de um espetáculo se não há capitalização vinda de nenhum lugar?”, pergunta a gestora cultural.
Ela lembra do artigo 215 da Constituição Federal, que diz “o Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais”. Aqui, cabe ressaltar que editais e leis de incentivo federais, estaduais e municipais são conquistas de anos de luta de trabalhadores da cultural. Um exemplo recente é a Lei Aldir Blanc (Lei nº 14.017, de 29 de junho de 2020), que disponibilizou renda emergencial aos trabalhadores do segmento e só foi aprovada depois de forte mobilização dos artistas [tanto a Cápsula quanto a Emerge tiveram projetos contemplados pela lei no final de 2020 #BitchBetterHaveMyMoney].
VISÃO ESTRATÉGICA NA PANDEMIA
De acordo com a pesquisa “Impactos da Covid-19 na Economia Criativa”, divulgada pelo Observatório da Economia Criativa da Bahia, 79,3% dos entrevistados cancelaram entre 50% e 100% de suas atividades em abril; 65,8% tiveram redução de contratos e pouco mais da metade (50,2%) teve que demitir colaboradores. A coleta dos dados foi feita entre março e julho, com 1.293 pessoas e 617 organizações.
A Cápsula foi uma das organizações que sentiu na pele o abalo econômico da pandemia. Italo e Camila tiveram contratos cancelados, o que impactou diretamente suas finanças. Para não perder de vista os clientes, a consultoria deu uma guinada para o digital.
Ao longo de 2020, realizaram lives informativas nas redes sociais, venderam mentorias online e, durante o Mês do Orgulho LGBTQI+, realizaram um evento virtual para dar visibilidade à produção cultural e social da população. A ação contou com a participação de Maite Schneider, da TransEmpregos; Tryanda Verenna, da página Homem Trans Br; e Nina Veloso e Raquel Braga, sócias do bar Das.
Com a internet, a Cápsula cruzou fronteiras e alcançou novos públicos. Em 2020, impactaram pessoas do interior de São Paulo, Minas Gerais e Bahia. No primeiro mês de 2021, fecharam trabalhos com o Sesc, para ministrar uma série de oficinas de elaboração e escrita de projetos culturais, e com a plataforma de e-commerce para criatives LGBTQIA+ Valejo, para realizar workshops de prospecção de clientes.
Num mundo onde máquinas e softwares – e empresários gananciosos – causaram desemprego em massa, a criatividade humana ainda é uma ferramenta insubstituível. Então, se jogue e faça seu corre inovador.
FOTOGRAFIA: Sol Faganello e divulgação.
Esta reportagem integra o projeto Mapeamento de Coletivos e Produtores Culturais da Região Metropolitana de São Paulo e conta com apoio do Edital ProAC nº 14/2019, de incentivo ao desenvolvimento da cultura popular, tradicional, urbana, negra, indígena e plural no Estado de São Paulo. Veja outras reportagens da série:
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