Há duas décadas, sítio em Paranapiacaba, em São Paulo, reúne camping, festivais de música e aparições de discos voadores em meio à mata atlântica
No meio da floresta existe um refúgio para quem não aguenta mais o mundo de concreto, de plástico e digital. Um lugar para se banhar em águas naturais, sentir o ar puro, pé na terra e passar a noite em volta da fogueira. Localizado a oito quilômetros da Vila de Paranapiacaba e parte do distrito de Quatinga, em Mogi das Cruzes, o Simplão de Tudo é um ponto de resistência e artes no meio do mato. É um camping-rock 4 e 20, LGBT friendly, perfeito para descansar dos excessos da cidade grande. Lá não pega sinal de celular e nem internet. Há opção de acampar ou ficar nos alojamentos e quartos.
No Simplão, passa um córrego e toda a água encanada é potável das nascentes e tem um lago-piscina de água natural corrente. A infraestrutura conta também com cozinha comunitária com fogão a lenha e um bar.
A região entre a Serra do Mar e o Planalto Paulista é conhecida por suas trilhas e cachoeiras e fauna e flora bastante preservadas. Do Simplão sempre saem grupos para fazer trilhas para as cachoeiras próximas, como para a corredeira das Mandalas. Cris do Simplão, guardiã da floresta e proprietária do local e que aparece na foto que abre esta reportagem, conta como tudo teve início:
“Há 20 anos, soube de um sítio à venda num condomínio em Mogi das Cruzes. O dono havia morrido, o lugar era ‘só mato’ e não possuía escritura, pois na época corria uma ação judicial para definir a propriedade. Mas como me apaixonei tremendamente pelo lugar, isso não importava”
Cheia de amizades e com perfil agregador, Cris reunia todo mundo no sítio. As pessoas iam chegando e ficando, dormindo em redes, até que alguém teve a ideia de levar a primeira barraca, porque dormir na chuva não dava. Os encontros entre amigos foram virando festas maiores com bandas, e o movimento cresceu até o sítio virar oficialmente um camping, que tem como uma das premissas a conscientização da importância de preservar a floresta.
No auge dos seus 62 anos, Cris é uma senhora eternamente jovem de dreads brancos; maconheira de carteirinha; porra louca que fala pelos cotovelos e ri alto, chora e se emociona toda vez que fala do Simplão e dos encontros da vida. Ela costuma receber todes com alegria como se fossem amizades antigas. O carinho dela pelas pessoas que chegam lá é parte da magia do lugar. Cris é a alma do Simplão, uma figura única cheia de história para contar.
O sítio também é a morada de Cris e, junto com ela, tem uma coletividade repleta de figuras carismáticas: Fernando Cabelo, memória viva do Simplão; Roberta, Ahlan e Ju, que fazem parte da atual equipe do camping bastante reduzida durante a pandemia; sua filha Déia, que além da produção geral faz a emblemática Pinga com Mel do Simplão; e muitas outras pessoas que fazem parte da família de simplônicos, como sua outra filha Drica, seu genro Vandré e os vizinhos seu Pedro e dona Márcia. A família canina também é bastante presente com Scooby, Psica e seus filhos Scooby-Loo e Velma.
INDEPENDÊNCIA OU ROCK
Em situações não-pandêmicas, o Simplão é conhecido pelas festas e eventos que acontecem em boa parte dos finais de semana, como o Weedstock, Independência ou Rock e o tradicional Aniversário do Simplão. Já passaram por lá bandas como Mulamba, Francisco el Hombre, Casa das Máquinas, Novíssimo Edgar, Veronica Decide Morrer, dentre outras quase mil bandas e diversas manifestações artísticas sempre presentes.
“O Simplão é um lugar para todos os povos, de todas as idades, raças, cores, credos e orientações sexuais. É um lugar só para loucos, só para os raros que não precisam de muito dinheiro, porque tem amigos de verdade e isso não tem preço”
O público vem de diversos lugares, com presença marcante das cidades de Guarulhos, Mogi das Cruzes, Suzano e ABCD Paulista (Santo André, São Bernardo, São Caetano do Sul e Diadema) e da zona leste de São Paulo. São várias tribos que se encontram nesse refúgio que faz parte de uma das áreas mais preservadas de Mata Atlântica do país.
Relatos de visões de luzes, discos voadores e gnomos não são raros entre os simplônicos, como são chamados os frequentadores do Simplão. As histórias de lá dão uma reportagem à parte. Talvez, as substâncias psicodélicas favoreçam as mirações; pode ser que os canais abertos possibilitem ver e/ou criar o invisível ou a “simples” conexão com a natureza proporcione percepções mais amplas.
“No Simplão todo dia é festa”, diz Cris. “Porque no Simplão só tem alegria, aqui nunca ficaremos sem música e nunca deixaremos de cantar”
Eu, Nube, frequento o local há alguns anos e, desde que fui a primeira vez, me sinto em casa. É sempre um presente encontrar a Cris, Déia, Cabelo e a galera toda – levo pra vida um número considerável de boas amizades que sempre faço por lá.
RESERVA AMBIENTAL
Como nem tudo são flores e florestas, há também muita luta envolvida na história do Simplão. Antigamente, era tudo mato e, se depender da Cris, vai continuar sendo assim por muito tempo. Porém, sabemos que a situação dos biomas nativos é sempre ameaçada pela ganância do homem branco. Há seis anos, Cris luta pela criação da Reserva Particular do Patrimônio Natural “Senhora Floresta”, que visa garantir proteção ambiental a uma área de 250 hectares, cerca de 250 campos de futebol, onde o sítio está instalado.
Entre ameaças recebidas, Cris já teve que lidar com interesses e descaso político e econômico, caçadores, especulações latifundiárias, estelionatos, conflitos de interesses entre proprietários da região e grileiros, que chegaram a invadir a área em 2014.
Além dos obstáculos já citados, a região vive também em risco de degradação por indústrias próximas e projetos falaciosos de reflorestamento, com foco em plantação de eucalipto, que serve aos interesses privados de indústrias de celulose, madeira e carvão. Vale destacar que a região possui milhares de quilômetros quadrados desmatados devido essa monocultura, os chamados desertos verdes, que causam ressecamento do solo e de fontes hídricas e redução drástica da biodiversidade local.
Atualmente, durante a pandemia, o Simplão está funcionando com capacidade máxima de 50 pessoas por fim de semana – o que é um número bem reduzido pelo tamanho do espaço – e uso obrigatório de máscara nas áreas comuns. Os eventos estão suspensos até que as aglomerações voltem a ser possíveis, o que tem consolidado o Simplão como local de camping e pousada ideal para o descanso. Uma das coisas que a Cris mais sente falta nesse momento é de poder abraçar as pessoas – e seu abraço apertado e caloroso dá saudades também. “O Simplão é pra todes querides que quiserem se juntar a um bando de loucos que somos nós”, diz Cris.
Abrir a barraca, ver tudo verde e ouvir uma infinidade de pássaros cantando; passar o dia sem pressa de boa na lagoa, andar pelo mato e sentir a força da floresta; ver o céu estrelado e trocar ideia na fogueira com alguém que acabei de conhecer e já virou amigue de infância. São momentos como esses que, enquanto bicho do mato que se preze, tornam o Simplão meu rolê favorito de São Paulo. Um espaço de encontros e conexões, de formar redes de afetos que se encontram para celebrar a vida e se fortalecer na resistência. Vida longa à loucura consciente.
FOTOGRAFIAS: Nu Abe
Esta reportagem integra o projeto Mapeamento de Coletivos e Produtores Culturais da Região Metropolitana de São Paulo e conta com apoio do Edital ProAC nº 14/2019, de incentivo ao desenvolvimento da cultura popular, tradicional, urbana, negra, indígena e plural no Estado de São Paulo. Veja outras reportagens da série:
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